Tinta Íntima: O Que Nos Atravessa.

 

Só as dúvidas santificam!

Dizem por aí que diferentemente dos outros animais, o homem é um ser de desejo movido pelas forças pulsionais: O único ser vivo que deseja, que é movido pela pulsão, por um desejo por ele próprio desconhecido. E que a irracionalidade é inerente a existência humana. Há coisas que são mais fortes que a razão.

Na realidade, a necessidade de preenchermos todos os espaços vazios, seja com gente, com fala, com música, com objetos, com estudo, com compras, com qualquer coisa que nos impeça de lidar com o intervalo entre uma coisa e outra, com o silêncio; nos faz padecer, sobretudo, de excesso.

O preço do desejo é retratado por William Shakespeare, através da personagem Lady Macbeth – personagem que, segundo Freud, é um exemplo típico de personalidade que entra em derrocada ao alcançar o que ambiciona -, da peça Macbeth (1605-1606).

Lady Macbeth in Ato I, Cena VII: Tens medo de ser na própria ação e no valor o mesmo que eras em desejos? Queres ter aquilo que estimas como o ornamento da vida ou viver como um covarde na tua própria estima, Deixando o não devo prevalecer sobre o deveria? Como o pobre gato que queria comer o peixe, mas não queria molhar a pata!

O desejo exige um preço, se queres o peixe, ainda que nunca se trate do peixe, terás que molhar a pata!

Há, portanto, um abismo entre abraçar as próprias imperfeições, furos, o que claudica e então produzir algo a partir disso.

A For e a Náusea Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

[A rosa do povo]

“VOZ EM OFF” DO ESCAFANDRO À BORBOLETA

O DESENCONTRO ENTRE O DIZER E VIVER

Esse espetáculo me deixa desamparado e pensativo. Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar o meu escafandro? Alguma linha de metrô sem ponto final? Alguma moeda suficientemente forte para resgatar minha liberdade? É preciso procurar outro lugar. É para lá que eu vou (BAUBY, 1997, p. 139).

 

A película O escafandro e a borboleta, baseado no livro do mesmo título, narra a história do jornalista francês e editor da revista ELLE, Jean-Dominique Bauby, acometido, aos 43 anos, por um AVC, agravado pelo comprometimento motor e perceptivo. Embora se tenha mantido consciente, não conseguia comunicar-se pelo aparelho vocal. No caso, a fonoaudióloga criou um modo de comunicação, a tradução do piscar do olho em emissão vocal e escrita.

O caso de Bauby mostra como cada falante possui no saber fazer diante da contingência, seja ele artista ou não. Ele cavou um novo lugar para ser sujeito, e um novo nome, movido pelo desejo decidido de escrever, e com isso fez uma composição da imagem corporal e se sustentou na fantasia de ser borboleta e vaguear por novos territórios. Diante do real: há uma saída.