Pare, olhe e escute.

Olhando e ouvindo, recebemos um conjunto de sensações através dos olhos, e outro, bem diferente, através dos ouvidos.

A VOZ É O SOM DO SER: a percepção não é uma operação “dentro-da-cabeça”, realizada sobre o material bruto das sensações, mas ocorre em circuitos que perpassam as fronteiras entre cérebro, corpo e mundo. 

Descartes começa sua Óptica de 1637 declarando sua excitação pelo telescópio. “Já que a visão”, escreveu ele, “é o mais nobre e mais abrangente dos sentidos, invenções que servem para aumentar o seu poder estão sem dúvida entre as mais úteis que podem haver” (1988: 57). E que invenção mais maravilhosa se pudesse imaginar que o telescópio, que aumentasse o poder da visão a ponto de abrir novos horizontes para a compreensão humana da natureza e do universo?

Apesar das contínuas dúvidas relativas à confiabilidade da visão em oposição à audição, a superioridade tanto da visão quanto da audição sobre os chamados sentidos de “contato”, que compreendiam o tato, o paladar e o olfato, não está em questão. 

 

Em seu estudo de percepção musical Victor Zuckerkandl, Sound and Symbol, compara o comportamento do cego e do surdo : 

A quietude, a tranquilidade, a confiança, pode-se quase dizer a piedade, tão comum nos cegos contrastam estranhamente com a irritabilidade e a suspeita encontrada entre tantos surdos… Parece que, pelo fato do homem cego confiança na orientação do ouvido em vez do olho, outros modos de conexão com o mundo são revelados; modos que, de outra forma, são ofuscados pela dominância do olho – como se, no domínio no qual ele entra em contato, os homens fossem menos sozinhos, mais bem providos, mais em casa do que num mundo de coisas visíveis para as quais o homem surdo é direcionado e às quais um elemento de alienação sempre se liga. (1956:3). 

Essa passagem mostra como a cultura ocidental tende a perceber a audição como calorosa, comunicativa e solidária; e a visão como fria, distanciada e insensível. Não por acaso, então, numerosos comentaristas procuraram culpar a obsessão pela visão dos homens da civilização ocidental moderna. (Jay 1993, Levin 1988, 1993). Mais do que qualquer outra modalidade de percepção, dizem eles, a visão nos leva a objetificar nosso ambiente, a considerá-lo como um repositório de coisas, alheias ao nosso eu subjetivo, que estão lá para serem apreendidas pelos olhos, demonstrados pela ciência, exploradas pela tecnologia e dominadas pelo poder. Se ao menos pudéssemos restaurar o equilíbrio devolvendo a audição ao seu devido lugar no sensório, alegamos, ideias recuperar uma atenção mais harmoniosa, benevolente e empática ao nosso entorno. Então, quem sabe, pensamos redescobrir o que significa pertencer (Heidegger, em particular, esforçou-se para recuperar esse senso de pertencimento por meio da repetição 
(…)   

O olho que ouve e o ouvido que vê

Pode o olho, talvez, ouvir também? Zuckerkandl acredita que pode; ainda que isso especifique. E que existem, sim, ‘atividades do olho que vão além da função de ver um objeto em um lugar – e que, além disso, vão numa direção particular-, de modo que parece natural compara-las ao modo de percepção do ouvido’ (p.344).

Em uma passagem de Sound and Symbol (1956), na qual o musicólogo Zuckerkandl é bastante categórico em relação à diferença entre as maneiras pelas quais o mundo é percebido pelo meio do olho e do ouvido. O olho reforça a barreira que separa dois domínios: o domínio interior da mente ou da consciência e o domínio exterior do mundo. Ele mantém as coisas à distância. Eles ficam ‘lá fora’, inseridos em seus próprios lugares em um arranjo espacial total que pode ser mapeado em termos de intervalos e fronteiras.

O espaço da visão é um do qual você, o espectador, está excluído; um espaço onde as coisas são, mas você não é. Assim, a experiência visual do espaço é, essencialmente, disjuntiva. Os domínios do ‘interior’ e ‘exterior’, como escreve Zuckerkandl, ‘se encontram face a face como dois territórios mutuamente excludentes de cada lado de uma linha divisória intransponível.’ Mas na audição, a distinção entre ‘territórios’ se transforma em uma entre as ‘direções’. Na direção interior, o mundo penetra a consciência; ao contrário, no mundo exterior, a consciência penetra o mundo (1956:368-9). No lugar da barreira que o olho ergue em volta do objeto percebido, o ouvido construiu uma ponte que permite um tráfego sensório de mão dupla.

O espaço da audição, então, não está colocado sobre você, o ouvinte, mas corre em sua direção e para dentro de você. Não é um espaço de lugares, mas sim de correntes, onde nada pode ser dividido ou medido. Sua experiência auditiva é, essencialmente, participativa, de tradição em uma ‘totalidade indivisível e sem fronteiras’ (p.336). E, deste modo, a qualidade ‘lá fora’, que experienciamos na visão, é derivada da qualidade ‘lá-de-fora-em-minha-direção-e-para-dentro-de-mim’. Ou, em outras palavras, o passo da percepção visual para a auditiva é ‘como a transição do meio estático para o fluido’ (p.277).

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Tim Ingold , “Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano” ,  Ponto Urbe [Online], 3 | 2008, Online desde 31 de julho de 2008 , conexão em 17 de julho de 2024 . URL : http://journals.openedition.org/pontourbe/1925; DOI : https://doi.org/10.4000/pontourbe.1925

A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos.


O gênio atormentado. É inegável o papel de Beethoven para transformar a música em arte, contudo o renomado músico teve uma vida atormentada. No entanto, apesar de suas doenças e ele foi capaz de produzir sua Nona Sinfonia e reger a orquestra, mesmo surdo. Ao longo da sua vida, Ludwig van Beethoven teve uma surdez progressiva que o afastou da vida social, mas não o fez deixar de criar grandes sinfonias. Imaginava a música que ouviria no cérebro.

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